sábado, 28 de maio de 2011

O CORREDOR DA TRUPIADA


por Ed Wilson Araújo*
Especial para o JP Turismo 2006

Os ensaios redondos dos bois de matraca foram abençoados com pancadas de chuva, lavando os terreiros de São José de Ribamar, onde as brincadeiras de bumba-meu-boi aprontam-se para os festejos em homenagem a São João. Desde o mês de maio, no sábado de Aleluia, os preparativos movimentam um dos maiores redutos de bumba-meu-boi do interior da ilha de São Luís – a Estrada de Panaquatira, o Corredor da Trupiada para onde convergem brincantes dos bois de Ribamar (Oiteiro), Sítio do Apicum e Panaquatira. Dos povoados nos arredores começam a surgir, pelas estradas carroçais, pessoas de todas as idades carregando pandeiros, matracas, tambores-onça, chapéus de pena e de fita, enfeites de todos os tipos característicos dos festejos juninos, arrumados com entusiasmo pelas mutucas – mulheres que acompanham as apresentações.
Com as fogueiras armadas e os terreiros enfeitados de bandeiras, estão preparados os palcos onde troam as toadas dos cantadores João Chiador, Zequinha e Egídio, respectivos comandantes dos três batalhões. Somados, os componentes oficiais das três brincadeiras formariam um “exército” com 100 índias, 155 caboclos de fita, 190 pandeiros e 42 caboclos de pena. Quanto às matracas, ninguém sabe precisar a quantidade de cada brincadeira porque a adesão é grande. A estimativa razoável, segundo o presidente do boi de Ribamar, José Itanei Nascimento dos Santos, é de 500 matracas num batalhão. “Menos fica feio e mais é exagero”, adverte.
Quando chega o mês de maio, de ponta a ponta a Estrada de Panaquatira assanha-se com o rufar dos tambores e o tilintar das matracas. É um espetáculo atípico em São Luís a concentração de três bumba bois na mesma área geográfica que vai desembocar em uma das mais belas praias da ilha, fonte de inspiração de cantores, cantadores e poetas.
Ribamar - O nome de batismo é João Costa Reis, mas no ritual do bumba-boi é João Chiador. “Esse nome eu peguei muito novinho, cantando boi de criança. Eu fui fazer uma apresentação no bairro de Fátima. Nesse tempo era Cavaco. Aí tinha uns projetores (de som) no alto de uma espécie de estaca. Tinha dado uma chuva forte e passou. Eu comecei a cantar e não saía a minha voz, só fazia zoar, chiar lá dentro. Nisso a coisa pegou desde 1958, esse nome João Chiador”, relata. Após 32 anos de cantoria na Maioba, ele migrou para Ribamar, onde há 14 anos empunha o maracá.
Na temporada 2006 o boi de Ribamar vem com o CD “Os 14 navegantes”, prestando uma homenagem póstuma às 14 vítimas do naufrágio da lancha que viajava de Icatu para Ribamar, em setembro, causando grande comoção na cidade. Além da toada-tema, o novo disco traz ainda as toadas de pique, compostas de rimas com “relaxos” recíprocos, incitando a veia poética dos cantadores. Em uma delas Chiador manda recado a Chagas da Maioba, Humberto do Maracanã, o “Guriatã”, e Zé Alberto da Madre Deus (veja letra da toada). Habilidoso nas palavras, Chiador inspira-se nas madrugadas, “quando a gente está com a memória bem sentada”, revela, explicando que batuca e grava só o começo da toada, para não esquecer. Ele afirma que as toadas de pique estimulam a criatividade dos cantadores e vêm de muito tempo. “Hoje estão mais leves. Somos amigos e compadres, todo mundo se abraça”, explica.
Sítio do Apicum – No meio do Corredor da Trupiada o urro é do boi do Sítio do Apicum. Há cerca de 16 anos, após quase três décadas sem vadiar, o batalhão foi “ressuscitado” pelo médico Francisco Abreu Pereira, juntamente com Antero Nunes e Antonio Maconha, explica o diretor de Eventos José Joaquim da Silva, o Zuca, que antes compunha o boi de Itapera do Maracanã. Apegado às raízes, o Sítio do Apicum está preparando para 2006 a volta do gibão e do colete (peitoral), uma marca da indumentária tradicional do bumba boi. “Vamos voltar a adotar a antigüidade”, orgulha-se Zuza, ao mesmo tempo em que relata as dificuldades para tocar a brincadeira. “Temos a ajuda de amigos e as apresentações são pagas pelo Governo do Estado, mas bancamos uma parte com recursos próprios, no esforço grande da comunidade”, reconhece.
Desde 1996 o boi é liderado pelo cantador João Fontes Maciel, o Zequinha, que antes cantava no Anil e em Itapera do Maracanã. Com o apoio de Raimundo Nonato, o Nonatinho, e José de Jesus Pereira, o Dijeca, o boi está com CD novo (Sítio do Apicum 2006), inspirado nas belezas naturais e na vocação religiosa da cidade balneária de São José de Ribamar. “Inspiração é dom, nem eu mesmo sei. Estou conversando, andando, quando a toada pinta na minha cabeça, bate no coração e eu apoio ela”, conta Zequinha. Algumas toadas são “tropadas”, ou seja, preparadas, carregadas de detalhes. “Se é muito difícil, a gente escreve e depois vai analisar, leva para o viveiro, canta para o povo, o pessoal vai concluindo”, explica. Zequinha não é muito apreciador das toadas de pique, mas se for provocado “é obrigado a bulir na memória para responder”, avisa.
Panaquatira - A mais nova brincadeira chama-se “Revelação da Ilha” (antigo “Brilho do Mar”), próximo à praia de Panaquatira, que surgiu da persistência do finado José Antonio de Oliveira, pai de Rosidete Conceição Oliveira, a presidente do boi. Em 1996, Oliveira fez um desafio ao sogro Egídio Silva, prometendo trazer de Primeira Cruz um boi para ele cantar. E cumpriu, como relata a filha: “Um dia papai chegou com a capoeira (armação) no ombro, entrou lá em casa e disse de supetão: está aqui Egídio o boi que tu vai cantar”.
Egídio ficou surpreso, mas não encarou o desafio porque à época ainda mantinha a tradição de quase 20 anos no batalhão de Ribamar. Ele passou a tarefa ao vizinho Elói, que fez um maracá de lata de óleo de cozinha, juntou um tocador de pandeiro e um matraqueiro, devidamente acompanhados de cachaça, dando início à brincadeira.
E assim foi crescendo. Mesmo com a morte de Oliveira, em 1998, a tradição foi mantida. O boi apresenta em 2006 o terceiro CD, puxado pela toada “Eu me inspirei no clarão da lua cheia”. Egídio é apreciador as toadas de pique. “Já fiz toada de pique para Chagas da Maioba, Dico da Matinha e Sabiá, antigo cantador do boi de Ribamar. Só não fiz para Chiador. É um cara bacana, de respeito, carismático”, reverencia.
Inovações - Há um consenso entre diretores e cantadores de boi de matraca quanto à tradição na percussão. “Trupiada bonita é com pandeiro de couro”, dizem em coro, mas enxergam algumas vantagens na introdução dos artefatos de náilon. Para o presidente do boi de Ribamar, Itanei Santos, o náilon ajuda na hora da chuva e no cumprimento dos rigorosos horários das apresentações. “Hoje as brincadeiras são nas carreiras. Não tem que passar nem diminuir um minuto. Então chegando só com o couro tem que ter de 20 a 30 minutos só para aquecer. E com o náilon vai chegando e gauarnecendo. Quando o couro está aquecido já se vai da quarta toada em diante. Não perde tempo”, justifica. Santos manifesta ainda uma preocupação ecológica. “O genipapeiro, de onde se faz o arco do pandeirão, está em extinção”, lamenta.
Outros boieiros repelem o náilon. E com razão. A introdução do pandeiro artificial empobrece a batida, descaracteriza a brincadeira e quebra o rito do fogo no boi. Sem a magia da roda de conversa ao pé da fogueira, perde-se o fio da ancestralidade e a pancada da trupiada fica oca e frígida, prejudicando o brilho e o som da brincadeira. A introdução do náilon nos pandeirões ainda vai gerar muito debate. Por enquanto, com os tambores afinados, as toadas ensaiadas e as incontáveis matracas, os batalhões do Corredor da Trupiada prometem fazer o chão tremer no São João, levando para os arraiais as rimas inspiradas em uma das mais belas praias da ilha – Panaquatira.
Toada: “Pai da Malhada”
Autor: João Chiador
“O pai da malhada urrou/Foi um grande o alvoroço na Ilha do Amor/Botou de joelho cantador pra respeitar/O urro do touro novo de São José de Ribamar/Arrancou palmeira lá em Maracanã/Desnorteado se calou o Guriatã/E a onça-tigre da Madre Deus descarreirou/Velho leão o bicho se acabou no Tamancão/Lá na Maioba foi muito pior/Só ficou de pé o meu cartaz/Tem candador chorando que o boi da Maioba tá muito velho/Só geme não urra mais//
Ed Wilson Araújo é jornalista e professor universitário
PERFIL DOS BATALHÕES
BOI DE RIBAMAR
40 índias
70 rajados de fita
18 caboclos de pena
3 Pai Francisco e 1 Catirina
3 vaqueiros
2 burrinhas
90 pandeirões
500 matracas
BOI DO SÍTIO DO APICUM
40 índias
60 rajados de fita
17 caboclos de pena
1 Pai Francisco e 1 Catirina
2 vaqueiros
4 burrinhas
50 pandeirões
400 matracas
BOI DE PANAQUATIRA
20 índias
25 rajados de fita
7 caboclos de pena
1 Pai Francisco e 1 Catirina
2 vaqueiros
2 burrinhas
50 pandeiros
300 matracas